sexta-feira, 12 de junho de 2009

As aventuras de João sem medo de José Gomes Ferreira


Para variar um excerto de uma obra editada no tempo da ditadura (1963):

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A distância entre as duas margens não era grande e João Sem medo morria de fome. Não hesitou, pois. Despiu-se e com a trouxa de roupa à cabeça penetrou no líquido esverdeado de limos, crente de que alcançaria facilmente a nado o laranjal apetecido.
Mas aconteceu então este fenómeno incrível: à medida que o nadador se aproximava da outra margem, a água aumentava de volume e a lagoa dilatava-se. Por mais esforços que despendesse para fincar as mãos na orla do lago, só encontrava água, água unicamente. A terra afastava-se.

- Bonito! Estou dentro dum lago elástico – descobriu João Sem Medo, esbaforido.
Mas fiel ao seu sistema de persistência enérgica não renunciava ao combate.
As margens desviavam-se, mas o rapaz nadava, nadava sempre, com confiança plena nos seus braços, na força de vontade e no desejo de vencer.

- Eh!, alma do diabo, sofre! – instigou-o por fim uma onda a deitar os bofes de espuma pela boca fora.
Um peixe insurgiu-se com voz mole:
- Assim não vale! Vê se acabas com isso. Eu e os meus camaradas peixes queremos dormir em sossego. Vamos, chora!
Uma gaivota baixava de vez em quando para lhe insinuar, baixinho:
- Então? Torna-te infeliz. Soluça. Berra. Chora. Lembra-te que seguiste o Caminho da Infelicidade. Não faças essa cara de quem ganhou a sorte grande.

Por último, uma coruja de mitra pequenina na cabeça e venda nos olhos – para voar de dia e de noite em perpétua escuridão – segredou-lhe ao ouvido:
- Queres laranjinhas? Ouve a minha sugestão: representa a comédia da dor. Finge que sofres muito, sê hipócrita. Mente. Pede a esmolinha de uma laranja por amor de Deus. Vá! Não sejas tolo. Chora.

Como única resposta, João Sem Medo repeliu a coruja, fez das tripas coração e desatou a cantar à sobreposse.
Então, ao som do seu canto, por fora tão vibrante e viril, a fúria das águas amainou. O rugir das ondas amorteceu lentamente. Um murmúrio de desistência soprou pela superfície do lago. E João Sem Medo, com algumas braçadas vigorosas e seguras, logrou pôr o pé em terra perto do laranjal carregado de pomos de ouro.

Claro, correu logo como um doido para a árvore mais próxima, sôfrego de engolir meia dúzia de laranjas. Mas, num lance espectacular, os frutos diminuíram rapidamente de volume até atingirem o tamanho de berlindes e – zás! – com um estoiro despedaçaram-se no ar.
Humilhado, e a contar com uma nova surpresa desagradável, abeirou-se de outra laranjeira. Desta vez, porém, as laranjas transformaram-se em cabeças de bonecas doiradas e deitaram-lhe a língua de fora.

- A partida anterior teve mais graça! – observou João Sem Medo.
E dirigiu-se para uma tangerineira com a vaga esperança de apanhar uma tangerina desatenta.
Isso sim. Mal o avistaram, os frutos caíram dos ramos como bolas de borracha e espalharam-se na paisagem.
Então, numa tentativa suprema, João Sem Medo acercou-se de outra árvore, sorrateiramente, em bicos de pés.

Tudo inútil. Como se estivessem combinadas, as laranjas e as tangerinas do pomar desprenderam-se dos troncos, abriram pequeninas asas azuis e começaram a subir serenamente no céu.

Apesar da fome, João Sem Medo, com os olhos fixos no espectáculo maravilhoso das bolas de ouro a voarem, não pôde reprimir este clamor de entusiasmo, braços erguidos para o ar:

- Parabéns, Mago. Parabéns e obrigado por este instante, o mais belo e bem vivido da minha vida. Obrigado. Mas agora ouve o que te peço: desiste de me perseguir. Convence-te de que, para mim, a felicidade consiste em resistir com teimosia a todas as infelicidades. E vai maçar outro. Ouviste? Vai maçar outro.»

José Gomes Ferreira, Aventuras de João Sem Medo


Comprei-o na FNAC em Lisboa, por 5,95 euros... para quem se queixa que é uma sorte encontrar pérolas destas...


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1 comentário:

  1. Realmente é uma pérola.
    "felicidade consiste em resistir com teimosia a todas as infelicidades".
    Gostei muito. Parabéns pela postagem.

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